Desobediência servil

Tem coisas que não se conta para ninguém, mas se descreve em detalhes.

O ambiente de trabalho e suas paredes de confinamento silencioso, as correntes da escravidão financeira, as alterações hormonais que se dão espontaneamente, a confissão anônima da proletária que digladia com as horas esparsas por um salário apequenado. 

Era uma outra tarde inexpressiva, sob a luz artificial do shopping center que recebia as madames de sempre e os príncipes de nunca. O ar condicionado a resfriar-lhe a cútis e o tédio a afugentar a esperança. Rompiam quatorze horas do dia e a hora de saída, da almejada troca de turno, parecia uma famigerada utopia. Passavam as mães de mãos dadas com os filhos e homens desatentos a tropeçar enquanto usavam seus smartphones.

No balcão dela ninguém se debruçava e o telefone sobre ele havia tocado, a última vez, lá pelas 10 da manhã.

Era um retumbante abismo de desinteresse. O colosso do enfado ocupacional.

A atendente, além do trabalho de meio período, ainda ajudava nas tarefas domésticas. O que mais ela poderia fazer? O que mais ela poderia querer? Pais conservadores, resignados na palavra do santíssimo. Às vezes, ela suspeitava que seu pai escapava da estrada do matrimônio. E era uma derrapada de ré. Do que mais ela poderia duvidar? Com o tique-taque insistente, ela planejava o que seria da noite. Seria sopa outra vez? Após a refeição, lavava os pratos e saía para andar com o cachorro, esse era o truque para se encontrar com aquele sujeito estranho que veio de algum lugar que não se recorda mais. A amnésia repentina é uma grande aliada para uma vida feliz. Ela não dava grande importância, afinal, ele não a tratava como deveria. O rapaz tinha a mão pesada para aplicar tapas na sua bunda, mas uma língua débil que não lhe garantia prazer. Voltava com as nádegas vermelhas quase a sangrar e com um vazio no peito do clímax não alcançado. Não era amor, tampouco paixão. Ela tão somente satisfazia a carne com um homem postiço que, por ora (e como é de praxe no universo masculino), não lhe negava fogo.

O último encontro havia sido decepcionante e só de lembrar já lhe ocorria uma sensação angustiante de dúvida: será que seria assim de novo? Será que continuaria a ver navios enquanto o seu permaneceria encalhado? 

Acontece que os homens, a maioria, tendem a, quando já acostumados ao terreno, minimizar suas potências no campo de batalha.

Antes, o repertório completo era:

O sujeito a fazia gozar. Gozava depois. Tinha repeteco. Ficavam abraçados e de chamego.

Mas, com o passar do tempo, o macho começa a se acomodar. Preguiça ou falta de vontade? Enquanto isso, afundam-se as mulheres na areia movediça do desamparo.

E ela era uma mulher comum. Todas são. Os homens todos são comuns também. Ninguém é especial e nem um pouco não-especial. As pessoas são um grande conjunto de organismos iguais que necessitam de ar para respirar e comida para gerar energia e água para equilibrar e orgasmos para viver. Somos idênticos no pressuposto do êxtase fundamental, acontece que alguns passam por doutrinação negacionista e daí…

Franzina, a donzela de pernas finas entrega a devassidão nos trejeitos safados que se camuflam em brincadeiras. Está sempre a provocar com sutileza, está sempre a um passo de se embebedar nos pecados. Seus braços finos foram um dia comparados, por ela mesma, com um membro viril e duro.

Será que o seu é da mesma grossura que o meu?

Embriagada ela se veste da sua melhor versão. O corpo todo reluz em tom acetinado, meio caminho entre o branco das nuvens e o bege do trigo virgem. Fosse uma bebida, seria a cerveja Weiss, refrescante e com sabor de cravo, envolvente, com uma cor amarela intensa e nada translúcida, é claro. O corpo da bebida esconde seus mistérios. A mais pura idealização da castidade, essa mulher esconde um imenso apetite sexual que a persegue durante o horário de serviço. Basta vestir o uniforme, observar os visitantes do centro comercial e pronto. Sua mente viaja sem amarras, visita os campos proibidos que ela tanto sonha em conhecer e as coisas das quais fora privada durante toda uma vida. Quer se lambuzar, algum dia, se assim o destino lhe permitir. É aquele tipo de par perfeito que obriga o colchão a ser virado após horas sobre ele, a fim de que seque o suor da selvageria.

A frustração da última noite medíocre lhe causava um quê de má vontade em relação a encontrá-lo novamente. Suspirava em desmantelo. Era melhor não pensar muito nisso, tinha eventuais clientes a atender e não queria ser obrigada a disfarçar um sorriso amarelo.

A garota tem os dentes da frente separados e, segundo uma ancestral filosofia, é esse o indicativo da mais avassaladora tormenta sexual em uma mulher.

Ela, tomada pelo calor de um gozo represado e ansiosa por entreter-se, conformou o cotovelo sobre o balcão e os quadris no desconforto de um banco alto. Segurava o queixo com a mão direita.

O tempo indelével trouxe uma jovem mulher, loira e de coxas firmes, quadris estreitos e bunda empinada, a desfilar em sua frente. A beldade estava acompanhada.

A solitária vendedora, de pronto se acendeu em rebolados. Pôs-se a cobiçar o dorso de dois corpos que se colocavam entre uma dada vitrine e ela que, por sua vez, continuava encarcerada no quiosque de vendas. Aquela ilha onde habitava uma náufraga da luxúria.

O casal não sabia, mas conseguira fazer sua mente desocupada começar a trabalhar. Um milagre. Se faltavam consumidores, por outro lado uma chama a consumia pelo estômago e fazia a virilha esquentar e o vão entre-coxas umedecer.

Seus pensamentos foram rapidamente multiplicando:

Como será que eles transam? O que será que ele faz nela? Ela tem cara de quem goza regularmente. Será que eles realizam fantasias? Será que eu devo realizar as minhas enquanto há tempo? Será que eu quero ser um casal ou ficar solteira?

Inundada pelo furor de um sentimento despudorado, a vontade lhe perturbou o juízo. Pôs-se a imaginar a carne rude daquele homem a penetrar o talho rosado da sua mulher. Involuntariamente, todo o caminhar era fascinante. O balanço dos glúteos alheios sequestrava o que havia de restante autocontrole na heroína trabalhadora.

Passeavam com seus músculos apertados contra o tecido da roupa chamativa. As silhuetas revelavam a proeminência dos seios, o volume do caralho. Contornos iluminados que serviam de inspiração para uma comum atendente. Não se conteve. A operária dera vazão à sua libido, desabotoara a calça jeans e deslizara alguns dedos dentro da calcinha. Tocava-se e introduzia o dedo médio para averiguar o seu estado corrente. Escondia-se sem preocupação, ninguém poderia imaginar aquilo. Às suas costas a escada rolante continuava a rolar, cheia de homens gordos com sorvete na mão e os olhares fixos nos espelhos do teto. A distração do mundo ignorava os instintos da voyeur exibicionista.

Sua mente figurava o tamanho do membro dele, o estilo de depilação dela. Como será que eles ficavam quando nus? Vermelhos, pálidos?

Pensou em pedir aos dois que concedessem a dádiva de assistir a uma foda bem dada. Ali, na sua frente, ao vivo, enquanto se masturbaria em honra aos gritos terceirizados.

– Oi, posso ver vocês transarem?

A cabeça lhe permitia ousar e em seu sonho desperto ela, inclusive, se colocou entre eles, revezando entre ser lambida, ser penetrada, usar a boca entre sexos.

Entorpecida pelo tesão, continuou a girar os dedos contra o clitóris inchado. Sua calcinha não pôde segurar o néctar e nas coxas já podia sentir o escorrer do maná. Os dentes rangiam e os lábios tremiam. Queria gritar, mas se segurava em sussurros fugidios. Os olhos perdiam o rumo e, descontrolados, viraram ao cerrar das pálpebras. A outra mão, sobre o balcão, contraía a tal ponto que rachou o lápis que se prendia entre os dedos. As penas dobraram com força e pressionaram as hastes da cadeira. Os lábios poderiam sangrar com os dentes que se lhes cravaram.

Com seguidas contrações abdominais, veio um furioso orgasmo.

Sacudindo a cadeira, de dentro do seu cubículo profissional ela entregou ao universo uma cachoeira de júbilo sensual.

Ousada. Absoluta. Quase desacordada, deitou a testa sobre o escuro mogno do balcão, afastando o teclado do computador.

Recuperou o fôlego, fechou o zíper, arrumou os cabelos para trás e levantou a cabeça.

Olhou firme ao horizonte e sorriu. Sorriu como nunca antes.

Ela já não era mais a mesma.

Sobre ver estrelas

Galileu em sua alcova
com a Lua em pleno arcano
ao deleite de uma dama
incendiou-se feito o Astro


Profano, mas virginal
deu de ombros para o cosmos
entorpecido em certo grau
que lhe governavam as vontades
de uma cabeça inconsequente
de Príapo a semelhança
fálica e sensual


Apaixonado pela cona
debruçou-se sobre a fenda


Com efeito, toda sua
oh nascedoira do orvalho
veluda, embora nua
muda em forma pura
com lábios que a protegem
por um talho separados


Se de frente irriga a vida
de soslaio a sacia
em lampejos do furo livre
desta carne libertina
tão onírica
qual riquíssima
que lhe abunda a poesia


Devassidão celestina, ópio nefelibata!


O acrobata se eleva quão faminto a devora
avante se esmera e a fundo nela ancora
o membro que pulsa rijo na gruta por onde chora


‘Onde?’ – invoca o bode
Ela sussurra – ‘em mim!’
sobre a cama em deleite na pele hirsuta, constelado
o sátiro, comovido, derrama o leite
em um útero anavalhado


Asceta? Amava a vulva de si acima
que o fazia ver estrelas ou arder feito cometa
qual modo iluminado
que inventou a tal luneta