A foto acima tirei em 2012, em Maceió, quando havia menos de um mês que morava na capital alagoana e fui, sozinho e de ônibus, visitar uma praia distante no litoral norte daquela costa coralina e morna. Numa das reentrâncias que ladeiam a estrada de mão simples (à época), chamou-me a atenção a cena que a mim inspirou como natureza morta.
Olhe novamente a foto: quanto merecimento em detalhes há no semblante de cada um dos personagens, quanta divagação permite o exercício de criar a partir do observar, quão rica a nossa imaginação pode hipoteticamente dar nome, história e correlação àqueles quatro indivíduos do momento congelado.
Vê-se o ancião e o concentrado ato de vasculhar pelos últimos amendoins do pacote, a garrafa de tubaína ao lado e a imensa distância dos outros companheiros de espera pelo próximo ônibus em um ponto cujo banco de madeira remete ao esquecimento do estado em suas periferias.
Há entulho, talvez um ferro-velho logo atrás.
A família que se conecta em dispersão. A moça com um olhar absorto, costas arqueadas como que se entendendo por vencida logo nos inícios da sua primavera, feição resignada e mãos ansiosas. O menino e a intrínseca atenção que é típica dos pequenos: aquela da fascinação por talvez uma formiga ou um besouro qualquer a carregar algo pelo chão. Quantas fábulas não confabula a mente do jovem ao olhar tão fixamente algo que a câmera não registra? E então a matriarca, que com os olhos monitora a esquina e suas bruscas surpresas com veículos em alta velocidade (inclusive o de sua condução) ao mesmo tempo que agarra com vigor duas de suas maiores riquezas: o garoto com o braço direito e a bolsa com seus trocados na mão esquerda.
Fazia o calor típico do verão nordestino naquele dia e o que se ouve no verão é o silêncio esmagador do sol.
O meu fascínio maior é pelo velho- os avançados em idade causam em mim grande sensibilidade. Assim o é hoje em dia quando, em razão da atividade remunerada que exerço por ora, vejo-me a servir um idoso. Dou-me em dobro em atenção e cordialidade, assim como também o faço ao agachar ante a mesa e ouvir por alguns breves minutos alguma das histórias ou comentários que pode aquele senhor ou senhora compartilhar comigo. Entendo como dever entregar o que essa faixa etária carece por mais: tempo.
Não lhes resta muito, não recebem muito, o tempo é tudo o que têm e não têm.
–Leia de novo e exercite o poder de conceder outros significados às palavras em itálico.
Dia desses aqui no restaurante conheci uma velhinha de passos comedidos e simpatia tamanha que, após ser servida um chá, perguntou-me se poderia viver comigo. Ao responder que ela era muito bem-vinda sempre que viesse ao restaurante, comoveu-me o peculiar estado no qual se coloca o cérebro vigiado pelo mal de Alzheimer.
Ela vem agora toda semana, acompanhada de seus filhos. Em uma das ocasiões a sua filha quis se solidarizar comigo ao ter que limpar toda a comida que ela havia espalhado sobre e sob a mesa dizendo “ufa, já estamos indo embora”.
Doeu. Doeu muito em mim.
Posso atacar e demonstrar indiferença a qualquer ser humano que seja capaz de se defender mas, questão de honra militar da alma, recuso-me a agir com pobreza de espírito com quem já não pode mais sequer compreender o azul do céu.
Redobrei a minha gentileza e o agir prestativo a cada uma de suas visitas subsequentes. Aquela senhora sequer se lembra do restaurante ao retornar, mas isso não importa.
Fico pensando a penúria de perder suas capacidades cognitivas ao passo que nem mais é possível compreender que isso está a se passar.
Estaria aquele senhor da foto na mesma distante e confusa realidade de uma cabeça impedida de exercer suas plenas funções?
Estarei eu, um dia, a confundir-me sobre quem é aquela pessoa a me dar banho?
Esquecerei-me das minhas próprias façanhas? Esquecerá o mundo de mim?