A minha cabeça se afastava da conversa e eu mantinha os olhos fixos nela, nos movimentos rítmicos dos lábios que se afastavam em sons agudos e se atraíam para emitir os graves. Gesticulava, socava a língua entre os dentes para produzir os sons de “th” como deve ser. A língua inglesa, tão objetiva. Seus pés se encontravam aos meus, sob a mesa. Meu raciocínio se embaralhava e eu percebia um lapso de vinte segundos da narrativa que voava da boca dela. As palavras trotavam como uma égua puro sangue e as frases terminavam com a gargalhada de tom feminino. As chamas lhe pareciam incendiar as ideias e, ao contrário do que preconizam as leis físicas, corriam corpo abaixo tomando o colo branco e incendiando o ventre liso até aterrar em seus delicados e pequeninos dedos espremidos em um sapato de salto. Eu me sentia aterrorizado por um constante dejavu, antecedendo coisas cujas consequências eu já poderia imaginar. Um filme cujo roteiro é escrito por mim, dirigido por minha pessoa e protagonizado pelo meu eu lírico, eis a vida.
As luzes da casa tremeram e à distância rugiu o trovão. Corremos para o chuveiro. No cubículo úmido por vapores valsamos sem música e evitamos o sabão que poderia limpar-nos a indecência que brotava dos poros. Imundos de tudo o que é pecaminoso aos olhos do mundo, deixamos que escorresse as lascívias justificadas. Pela janela os olhos avistavam galhos rompidos que despencavam das alturas. O vento sacudia as folhas verdejantes como assim o fazíamos com nossas ancas. As luzes tornaram a piscar, mas o aquecimento é movido a gás, e nosso gás parecia infinito. Os sopros intensificados passaram a arremessar tudo pelos ares. Algo grande se pronunciava na natureza enquanto eu ouvia uma orquestra de câmara a excitar-me.
Os ouvidos. Os olvidos. Lembro-me de muito pouco do antes de ontem. Sei que existe uma mulher à minha frente e outra dentro de mim. Fêmeas que se cheiram. Às vezes não se bicam. Eu vou ao quintal e grito por ela. Uma chuva fina cai e tropeça em mim. A minha dama vem porque eu gritei por ela e também bati à janela. Eu digo que há algo de errado com o chão. Ela pergunta o que é. Eu digo que é o meu joelho. Como assim? Eu me ajoelho, devoto, saco do bolso a pequena caixa da esperança. Pergunto o que preciso saber. Ela diz sim. Mãos à boca e corpo curvado. Levanto e a beijo. Vamos para um restaurante. Peço drinks e ela pede que eu fale. Tudo tão rápido como nossa fábula de paixão e necessidade. O copo dela contém sal de lava negra vulcânica. No meu, aperitivo. Rimos e percebemos que os coquetéis não conseguem se manter bons até o fim, assim como a maioria dos casamentos. O desafio é arredondar núpcias e batidinhas que conservem o frescor antes de se tornarem aguadas.
Outro bar, agora com o triplo de pessoas do local anterior. Chamam-me pelo nome e notam a aliança no dedo dela. As luzes e as bênçãos e as energias derramam-se por ela. Pedimos as gotas mágicas. TCHAC TCHAC! A bartender agita as coqueteleiras com o vigor do Atlântico Norte. TCHAC TCHAC! Há cachaça no dela, há rabo de galo no meu. TCHAC TCHAC! Que os céus sejam moderados com os rabos de saia, porque eu só quero os de galo, os de galo! TCHAC TCHAC! Violentos agitos dos tubos prateados com gelo e álcool e especiarias. TCHAC TCHAC! Ela esparrama a bebida da minha noiva em uma taça circular com a borda cravejada por açúcar. No meu copo há uma bola de gelo do tamanho das de sinuca. Brindamos em nome de nós, cegos. Estamos apaixonados e não podemos ver nada como é. Há um creme brulée e agora os beijos estão ainda mais doces. Seria um desperdício não petiscar tanto quanto o apetite pede. Arriscamos viver em cativeiro um dia, alguém consegue se lembrar?
Agora há uma mesa entre nós e o garçom tem cabelos longos e loiros, cacheados e serpenteantes. Ele faz gracinhas que nos deixa à vontade. Sinto vontade de ficar de cuecas e abraçar a ele e ao chef, que manda pernas de rã fritas e ostras frescas no gelo. Bebo uma dose de não sei o quê. Serviram algo de envolvente, acho que foi camaradagem. Há brilho nos olhos dela, há um espelho d’água nos olhos meus. Acho que ela fez o impossível, não, não acho não.
Tudo continua como o planejado, eu sei. A história é minha, eu regulei a luz, ajustei o foco, gritei ação. Nada é encenado no palco da gente. Vou ao banheiro ansioso por voltar à mesa, onde em mim ela me tem. Na minha ausência, o garçom diz que ela é uma mulher de sorte. O dono do estabelecimento tem cabelos brancos e bigode branco. As curvas de seu bigode lhe conferem um título automático de lorde. Ele acena com a cabeça, elegante.
Eu retorno e a tomo pela mão. Voltamos para casa e a eletricidade continua ausente. As janelas agora estão abertas. Estendo o meu coração em uma delas, para quem quiser ver. Sou homem feito da carne humana, vim do pó e hei de voltar, amo porque a mim compete, do espírito me saltam verdades.
Há a escuridão e nossos troncos. Enterramo-nos. Um órgão que pulsa e um órgão que emite notas. No breu uma luz repentina. No céu, no peito, cá dentro. Adormeci nas costas dela e acordei nos céus suspenso.